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segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Muito além do Facebook

Em 2011 um estudante de direito de Viena processou o Facebook (FB) por violação de dados, por armazenar informações que, segundo o mesmo, deveriam ser completamente deletadas, mas que, segundo o FB, são apenas “removidas” do ambiente virtual da rede, mas não deletadas dos servidores.  O mesmo estudante criou um site chamado “Europe versus Facebook”, onde é possível acompanhar o andamento do processo. Há também um vídeo no YouTube explicando o caso. Existe um outro vídeo que, apesar de apresentar informações verdadeiras, acaba abordando a questão de um ponto de vista exageradamente conspiratório, reduzindo um conjunto complexo de fatores e relações de interesse político e econômico que resultaram na criação e popularização do FB a um plano conspiratório arquitetado, segundo o vídeo, por três cabeças, a saber, ‘uma estrela midiática [Mark Zuckerberg], um filósofo o futurista que quer destruir o mundo real [PeterThiel] e um terceiro investidor envolvido diretamente com a CIA [James Breyer]’. O vídeo parece ter se inspirado em um artigo (tradução) de Tom Hodgkinson, publicado no The Guardian em 2008. No entanto, ao contrário desse artigo, o vídeo apresenta as informações de maneira muito mais resumida e simplista.
Ao que me consta, Peter Thiel, apesar de ser graduado em filosofia pela universidade de Stanford, é reconhecido mais como um gênio investidor do que como filósofo. Além disso, Thiel é membro do The Vanguard Project – sob direção de Rod D. Martin – um esforço para construção de uma plataforma tecnológica e de uma infra-estrutura organizacional que viabilize o ativismo dos defensores da liberdade (sic). Mas há uma entrevista interessante de Thiel onde ele expõe algumas das razões “filosóficas” que orientam seus investimentos, há também um artigo, "A educação de um libertário", onde afirma que “Em face dessas realidades, alguém poderia se desesperar vendo o limitado horizonte do mundo da política. Eu não me desespero porque já não acredito mais que a política abarque todas as possibilidades futuras do nosso mundo. No nosso tempo, a grande tarefa para os libertários é encontrar uma escapatória da política de todas as formas – da totalitária, fundamentalista e catastrófica chamada ‘democracia social’”.
       Thiel foi co-fundador do PayPal e nos primórdios do FB, quando este já gozava de certa popularidade, investiu meio milhão de dólares na empreitada tecnológica de Zuckerberg. Na entrevista citada acima, fica mais claro porque Thiel não crê que a política abarque todos os futuros possíveis do nosso mundo. Se Thiel realmente não crê nisso, então quais são as bases da sua visão libertarian de mundo? Como disse anteriormente, Thiel é mais reconhecido como investidor do que como filósofo; desse modo, creio que a base e motivação do seu libertarismo é essencialmente econômica. Apesar do papo filosófico, todo o papo sobre liberdade, resume-se apenas a liberdade para ganhar dinheiro do jeito que bem entender, conforme as “necessidades” do mercado. A política e a filosofia, apesar de serem indispensáveis para a realização desse projeto, não são propriamente a preocupação central desse grupo de investidores de risco. Nesse sentido compreende-se porque a política se apresenta para ele como um mundo de horizonte limitado. Quando o assunto é livre mercado, o debate político parece se colocar sempre como um entrave para a ampliação dos horizontes e dos lucros futuros possíveis do nosso mundo. A expressão máxima dessa liberdade se da na prática do consumo, e veremos mais adiante os limites dessa concepção “libertária”, que é bem resumida na fala de uma personagem do filme Cronicamente Inviável, para a qual “a liberdade de consumo é a única que deu certo até hoje”.
            Na entrevista supracitada, quando o entrevistador pergunta a Thiel como ele se envolveu no projeto do PayPal, este responde que a ideia surgiu quando ele e alguns amigos queriam começar uma empresa que iria mudar o mundo (horizonte político) e mudar as moedas, criando uma nova moeda privada (horizonte econômico). Quando perguntado sobre a possibilidade de o PayPal ser, em breve, totalmente internacionalizado, ele responde que apesar de haver regulamentos distintos em cada país acerca desse tipo de transação, o mundo tem se tornado cada vez mais globalizado nos últimos 8, 9 anos, desde o lançamento do serviço. Vê-se porque Thiel não deixa limitar o seu horizonte ao mundo da política. Na atual conjuntura a política é, de modo geral, trabalho para políticos profissionais, financiados por investidores como Thiel para abrirem caminho para a realização dos seus investimentos.
Não penso que Thiel seja um filósofo. Assim como todos esses aventureiros do capital de risco, para quem a economia não passa de ciência do lucro, Thiel pensa que a política não abarca todos os futuros possíveis de nosso mundo, pois nem todos esses futuros possíveis serão necessariamente desejáveis de um ponto de vista político. Somente em uma economia concebida como ciência do lucro qualquer futuro possível é desejável... Claro, desde que seja bom para os negócios.
Como se pretende mostrar mais adiante, esse capitalismo “libertário” pode estar, em certo sentido, muito próximo de um novo tipo de fascismo que, conforme Michel Onfray, não é mais aquele “fascismo de leão”, nacionalista e racista, mas um “fascismo de raposa” que

tira as lições do passado e supõe arranjos formais, revoluções de significantes. Porque o liberalismo é plástico: aí está, de resto, a sua força. O golpe de Estado não é popular: visível demais, indefensável demais nessas horas de midiatização planetária e de pleno poder das imagens. Pega mal... Donde a rejeição da violência do leão maquiavélico em benefício da raposa pertencente ao mesmo bestiário, mas célebre por sua astúcia, sua velhacaria, sua vigarice. O leão recorre à potência do exército, a raposa à força dos arranjos discretos (2010, p.128).

Mesmo levando em conta o que dizem os adeptos dessa teoria, a meu ver a preocupação central dele não é política (libertarian), afinal, ele não se deixa limitar por esse horizonte, a questão política é apenas um meio de viabilizar os negócios que, quando parar de render bons lucros ou mais dinheiro, ele pulará fora, para outro negócio, outro nicho de mercado. É mais um daqueles “espertos ao contrário” que para manter a imagem de bom moço tem um discurso, mas a prática implica justamente o contrário do que prega, não a liberdade, mas apenas mais uma nova forma de liberdade tutelada, vigiada e consumível.
            No entanto, não creio que Thiel queira destruir o mundo real (pelo menos não nos termos e no tom do vídeo-documentário supracitado), pois é nesse mundo que ele poderá desfrutar daquilo que lucrou com o mundo “virtual”. Além do mais, não creio que tenha investido tanto dinheiro no FB motivado pela ideia de criar uma experiência de manipulação global em um sentido orwelliano, mas sim uma plataforma tecnológica que viabilize o ativismo dos defensores da “liberdade” e, ao mesmo tempo e principalmente, encha seu bolso de dinheiro. O FB pode ser utilizado tanto na manipulação e ativismo de direita quanto de esquerda. Não que o FB não possa ser ou não é usado para esse fim, mas não creio que tenha sido pensado e idealizado com esse objetivo, apesar de ter esse potencial e de poder ser utilizado dessa maneira.
Um indício de que Thiel está, em último caso, mais interessado no potencial financeiro do FB do que em possíveis experimentos de engenharia social é o fato de o mesmo ter vendido recentemente a maioria de suas ações da rede social (ações estas que já estão em queda). Se não está dando mais o retorno financeiro esperado, não há projeto ou motivações políticas para uma manipulação global que se sustente. Não se trata de dizer que há uma conspiração nesse sentido, algumas ações podem ser calculadas, mas não é possível calcular tudo, outras situações vão se constituindo de maneira acidental, aleatória ou imprevista. Thiel pode não ter nenhuma dessas intenções, mas a meu ver essas são as conseqüências dos negócios e das práticas financeiras que ele e outros investidores realizam.
O “fascismo” não tem mais essa cara:
Ao contrário, agora a nova cara do fascismo, desse microfascismo de raposa, é essa:
Em algumas ocasiões esta imagem costuma vir acompanhada com os seguintes dizeres: “sorria, você está sendo filmado”. Simpático, não?
            Em 2005, James Breyer, presidente da firma de capital de risco Accel Partners, empresa que detém 11% do FB, investiu 12,7 milhões de dólares na rede social de Zuckerberg. Breyer, assim como Gilman Louie, foi presidente da associação comercial que representa a indústria de capital de risco nos EUA, a National Venture Capital Association (NVCA), e atuaram juntos no conselho administrativo da associação.
De fato, tanto Louie quanto Breyer não estão acima de qualquer suspeita. Louie já foi membro do grupo de assessoramento técnico do comitê de inteligência do senado dos EUA, bem como da comissão nacional de revisão de programas de pesquisa e desenvolvimento da comunidade de inteligência dos EUA, recebendo diversos prêmios pelos serviços prestados. Em 1999 foi escolhido pela CIA para dirigir a In-Q-Tel que, segundo o próprio Louie, é um fundo de investimento estratégico criado para ajudar a melhorar a segurança nacional, ligando a CIA e a comunidade de inteligência dos EUA com empresas de capital de risco que investem no desenvolvimento de novas tecnologias. Segundo Louie, essa parceria público-privada surgiu da necessidade de transferir tecnologia da informação para a CIA mais rapidamente do que os processos de aquisição tradicionais. Desse modo, como a CIA não estava conseguindo mais acompanhar o processo de desenvolvimento tecnológico, isto é, como o Estado estava ficando para trás, resolveram estabelecer um fundo de capital de risco para alimentar empresas de alta tecnologia. A partir desse fundo investe-se em empresas que desenvolvem tecnologia (tais como FB) do interesse das agências de inteligência norte-americanas.
Desse modo, há uma complexa rede de empresas de tecnologia e de investidores de capital de risco que mantêm relações com a In-Q-Tel, algumas de maneira indireta, todos trabalhando para o governo dos EUA, em troca de alguns milhões de dólares, claro. O FB de Zuckerberg é apenas mais uma dessas empresas a receber recursos desse fundo ou através de investidores ligados a ele, investimento que certamente tem sido bem sucedido. Tanto Thiel quanto Breyer mantiveram e mantêm relações direta ou indiretamente com essas agências e fundo de investimento, pois atualmente esse é um bom nicho de mercado. Eles trabalham para o governo, utilizando recursos de um fundo de investimento público, aplicando-o nas empresas nas quais são diretores, lucrando duplamente com o negócio. Aliando o útil ao agradável, desenvolvem tecnologia para as agencias de inteligência, para o Estado e governo, ao passo que essas financiam o desenvolvimento dessa tecnologia, esses investidores as utilizam também com um fim comercial, peneirando as informações e vendendo-as para empresas e agencias de publicidade. Não há dúvida de que são gênios na arte de ganhar dinheiro.
O Big Brother não é uma pessoa, ou três cabeças que querem manipular/ dominar o mundo, mas uma rede complexa de pessoas e instituições, rede esta a qual, por mais distante e indiferente que possa parecer, também fazemos parte. The Big Brother is YOU! Não é possível compreender o que está passando ou acontecendo atualmente a partir de uma visão estritamente orwelliana do mundo. Nossa realidade é muito mais sofisticada e complexa do que supunha Orwell. O estado e as empresas espiam os cidadãos e os consumidores (articulação do horizonte político com o econômico-financeiro). Os cidadãos também espiam algumas atividades (as mais públicas) dos políticos e dos empresários. E agora, com o WikiLeaks, já temos tido algum acesso a informações sigilosas, mas que, ao contrário do que acontece nas redes sociais, onde fornecemos informações pessoais voluntariamente, o vazamento dessas informações, por serem altamente sigilosas, colocou a corda no pescoço de Assange.
Desse modo, as redes sociais, e-mails ou quaisquer serviços oferecidos por empresas como o Google, não têm por objetivo apenas “aproximar as pessoas”. Como o Gmail direciona publicidade especificamente sobre temas e assuntos dos meus e-mails? “Este anúncio é baseado em e-mails de sua caixa de correio. Acesse o Gerenciador de preferências de anúncios do Google para saber mais, bloquear anunciantes específicos ou desativar anúncios personalizados”. No entanto, não há a opção de desativar os anúncios, apenas de desativar anúncios personalizados, o que é muito pior, pois acaba enviando todo tipo de anúncio para a página inicial do Gmail, e não aqueles que dizem respeito ao conteúdo dos meus e-mails.
A tecnologia desenvolvida para isso permite a construção de vários perfis de usuários, um prato cheio para qualquer agência de segurança, e é por isso que estão investindo pesado nessas empresas que, como disse, lucram duplamente com isso. No entanto, creio que a tendência é não haver (isso se já não há) mais um centro de inteligência com acesso privilegiado a informação. As informações estão cada vez mais acessíveis a todo mundo, basta saber acessá-la (como tem feito o wikileaks). Hoje em dia todos somos potenciais agentes de espionagem. A questão não é deixar ou não deixar de utilizar esses serviços, mas de pensar o que estamos fazendo de nós mesmos em relação a isso, de que maneira estamos vivendo isso e se é possível utilizar esses recursos de maneira tal a não alimentar essa lógica microfascista.

Outra lição magistral, a de La Boétie: ele afirma em seu Discurso da servidão voluntária que todo poder se exerce com o assentimento daqueles sobre os quais se manifesta. Esse microfascismo não vem de cima, portanto, mas se irradia ao modo rizômico com atravessadores – potencialmente, cada um de nós... – que se tornam condutores, no sentido elétrico, dessa energia ruim. Essa constatação constitui o primeiro tempo necessário para uma lógica de resistência. Saber onde está a alienação, como ela funciona, de onde provém, permite encarar a continuação com otimismo (ONFRAY, 2010, p.128).

          Talvez tudo isso possa parecer muito estranho, afinal, não temos nenhuma força ou poder que nos obrigue a isso, agimos assim voluntariamente, já não há mais um governo opressor exercendo seu poder sobre nós, não há mais ditadura, o fascismo e o estado policial sucumbiram há muitos anos. No entanto, o “fim” desses estados totalitários ou governos ditatoriais se devem mais as lutas sociais ou ao fato de os mesmos já não serem mais necessários? O desenvolvimento tecnológico na área da comunicação e da computação se confunde, em certo sentido, com o desenvolvimento de novas tecnologias do poder e de novas técnicas de governo, ou melhor, de governamento. As ditaduras leoninas se tornaram ou vem se tornando cada vez mais obsoletas. Vivemos “livremente”, pois o uso da força bruta ou o exercício explícito desse poder de leão já não é mais tão necessário (isso não quer dizer que não possa voltar a ser).  A raposa sabe ser mais sutil.

Foi uma das coisas mais horríveis que o castrismo conseguiu: romper os laços de amizade, fazer com que desconfiássemos dos nossos melhores amigos, transformá-los em informantes, em tiras. (...) O mais dramático de tudo foi que muitas pessoas se tornaram vítimas da chantagem e do próprio sistema, até perderem sua própria condição humana (ARENAS, 1995).

Em muitos regimes totalitários, uma das estratégias das organizações de inteligência e polícia secreta era a de recrutar informadores civis. A STASI, polícia secreta da Alemanha Oriental é um bom exemplo da utilização desse método de espionagem, criando uma grande rede social de informantes civis. Se antes o recrutamento se dava em um ambiente de tensão e repressão, onde muitos cidadãos se viam obrigados a espionar seus amigos, atualmente as estratégias de recrutamento são mais sofisticadas.  A CIA tem utilizado o facebook como centro de recrutamento, criando até um vídeo institucional para a divulgação da campanha intitulada “CIA Clandestine Service Ad”. Não há nada por trás da cortina, está tudo aí, basta abrir os olhos e ver.
Em relação ao caso ou exemplo cubano há o livro do qual extraí o trecho citado anteriormente, uma autobiogradia de Reinaldo Arenas, que inspirou o filme Before Night Falls (Antes do anoitecer), com Javier Bardem. Em relação ao caso alemão há outro filme, A vida dos outros, que busca retratar como a polícia secreta monitorava a vida da população através das informações prestadas pela própria população. Nos dois casos o alvo da perseguição e vigilância são escritores. No entanto, no caso de Arenas, a sua contrariedade em relação ao regime castrista era mais visível e declarada, “justificando” a perseguição sofrida; no caso do personagem do filme A vida dos outros, Georg Dreyman é um dramaturgo que nunca contestou o governo e o regime no qual vivia, mas mesmo assim ele e sua namorada acabam virando objeto de vigilância e perseguição, sendo a namorada de Dreyman vítima de chantagem em troca de favores sexuais.
Todas essas práticas que marcaram nossa história e que normalmente são relacionadas ao passado e a regimes políticos autoritários já inexistentes ainda estão, na sua sutileza de raposa, muito presentes na nossa atualidade. Aqui novamente a questão não é manter ou não manter relação com esses serviços, mas que tipo de relação temos, podemos e/ou queremos ter com eles, e não se deixar fisgar e/ou cooptar acriticamente por essa lógica de poder.
Voltando à questão da liberdade, vimos que a criação dessas plataformas tecnológicas, de toda essa infra-estrutura organizacional que pretende viabilizar o ativismo dos defensores da “liberdade” tais como Thiel e cia, não é assim tão libertária. Aqui não é possível falar em Liberdade de modo geral, pois ela possui diversas acepções, e não um sentido geral, universal ou único. Por mais paradoxal que possa parecer também é possível falar de uma liberdade fascista. Assim, o conceito de Liberdade é compreendido de diversas maneiras, entre diversas correntes políticas e de pensamento, tais como os neoconservadores libertarians como Thiel, anarquistas de diversas vertentes, socialistas, comunistas etc. Na década de 30, o General Góes Monteiro, ministro da guerra de Getúlio Vargas, admirador do nazi-fascismo, publicou um artigo no jornal O Estado de São Paulo onde afirmava que

Toda a liberdade concedida contra os interesses do Estado será um foco de onde podem brotar germens perigosos. Toda liberdade para fortalecer a segurança do Estado é um bem para a coletividade que deve viver sob permanente equilíbrio social – o que só a justiça incorruptível alcançará, guiada pelo senso das nossas realidades e necessidades (Gen. Góes Monteiro apud Moura, 1933, p. 7).

         Agora experimentemos fazer um pequeno jogo de palavras, substituindo no texto acima a palavra “Estado” por “Mercado”, que teremos uma ideia do quão próximo pode estar o libertarianismo neoconservador de Thiel da concepção de liberdade do Gen. Góes Monteiro, a concepção de liberdade dos fundamentalistas do livre mercado da concepção de liberdade dos fundamentalistas do Estado total.
A partir do texto de Étienne de La Boétie, citado por Onfray, Discurso da servidão voluntária, e o capítulo 7 do livro Arqueologia da violência – pesquisas de antropologia política de Pierre Clastres, poderíamos abordar a questão da liberdade e de como somos levados a abrir mão dessa liberdade, do amor a liberdade para, voluntariamente, passar a desejar e amar a servidão. A relação que muitas pessoas estabelecem com as plataformas tecnológicas não é uma relação de liberdade, mas de um aprisionamento que reforça a servidão a uma determinada estratégia de poder político, isto é, aquela defendida por adeptos de projetos como o The Vanguard Project e de todos aqueles investidores ou capitalistas de risco citados anteriormente. Mas como explicar o fato de abrirmos mão voluntariamente da nossa privacidade, do nosso tempo, para nos dedicarmos a esse tipo de compartilhamento de informação e relação social? Aqui, creio, entraria outra questão complicada, a do desejo.
Essa questão do desejo e da manipulação do desejo é uma das questões centrais apontadas por Foucault em Introdução à vida não-fascista, em relação a uma arte de viver contrária a todas formas de fascismo. Sobre isso, ele levanta três questões, a saber, “Como introduzir o desejo no pensamento, no discurso, na ação?” (podemos problematizar, assim como o fez La Boétie, como o fascismo introduz certo desejo nas pessoas. Sobre isso o texto da Maria Lacerda de Moura traz um bom exemplo), “Como o desejo pode e deve desdobrar suas forças na esfera do político e se intensificar no processo de reversão da ordem estabelecida?” (aqui, claro, ele está se referindo a uma estratégia antifascista) e, por conseguinte, “Como liberar nosso discurso e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres [e desejos] do fascismo?”.
O sucesso dessas plataformas tecnológicas, do consumo desenfreado de todos os produtos tecnológicos fabricados e com data de validade pré-determinada (a chamada obsolescência programada), a produção desse sentimento de necessidade de que “não posso viver sem isso”, não é apenas fruto, o resultado de uma estratégia política e econômica bem sucedida de moldar e deformar o desejo da população? O fato de eu desejar fazer algo, consumir um produto ou entrar em uma rede social e, “voluntariamente”, tornar públicas informações pessoais, significa que a ação decorrente desse desejo é uma ação livre? E esse desejo, é um desejo somente meu ou é um desejo coletivo?
Não há como dar conta de todas essas questões neste ou mesmo em qualquer outro momento específico. Desse modo, apenas citarei, como sugestão de leitura, um trecho da apresentação do livro A República de Platão: a boa sociedade e a deformação do desejo, de Martha Nussbaum, que discute um pouco essa questão.

Nussbaum estabelece uma discussão sobre o conflito entre liberdade de escolha e deformação do desejo em nossa democracia e em regimes não-liberais, que sustentam serem incompatíveis liberdades políticas e bem-estar humano. Nussbaum substitui a discussão filosófica platônica baseada em verdades absolutas, por outra baseada no discernimento ético, como nos ensina Aristóteles. Em suma, Nussbaum nos convida para uma reflexão sobre liberdades que se apresentam como negociáveis e como não-negociáveis, constituindo, desse modo, uma permanente tensão (2004, p. 10).

Alguns liberais parecem defender uma paradoxal concepção de liberdade (especialmente os mais radicais). Há ideia mais totalizante e autoritária do que aquela que pretende condicionar as relações sociais, políticas ou econômica, o mundo, a uma única lógica, a do livre mercado e do consumo? Liberdade de mercado não é Liberdade em geral, pois também pode engendrar outras formas de aprisionamento, servidão ou sujeição. Claro que nem todo mundo sabe ou se importa/ preocupa com isso. A questão é que podemos sempre pensar em alternativas possíveis, e não aceitar uma doutrina ou proposta política dogmaticamente, como se fosse a verdade absoluta ou o fim da história. É interessante perceber o uso político do apelo a uma pretensa autoridade científica para justificar “cientificamente” de que a concretização ou realização de um determinado padrão ou modelo político, econômico e/ou sócio-cultural representa a realização do espírito absoluto, do fim da história e do bem-estar universal.
Não é possível defender taxativamente essas visões de mundo, pois não são perfeitas, não tratam somente de verdades científicas, mas também de outras coisas, que dizem respeito também ao modo de vida que as pessoas pretendem levar, aquele que a conjuntura lhes permite ter e as brechas pelas quais é possível mudar. Penso que se há uma estratégia política na qual a esquerda, apesar de controversa, logrou algum êxito foi a de agir nas brechas, principalmente em determinados períodos históricos, no entanto, atualmente certos setores tem se fechado a diversas possibilidades de resistência e prática política, optando apenas pelo jogo de cena, pelo panelaço, pela agitação publicitária. A midiatização da política está presente nas práticas políticas mais cotidianas e infinitesimais, e não somente entre grandes partidos em período eleitoral.
A revolução cultural gramsciana defendida por alguns esquerdistas não se completará se não for aprofundada, sendo irradiada globalmente nas malhas da rede social e não apenas em um ou alguns locais privilegiados da rede, e esse trabalho passa também por um processo educativo, pensar a formação também como um trabalho sobre si mesmo e do outro, na relação entre o si e o outro, para que o modo de pensar o macro seja coerente com a prática política cotidiana, pois é ela que permitirá a realização dos objetivos macropolíticos de um determinado projeto de poder (e acredito que a estratégia da nossa esquerda hegemônica tem sido somente essa e até aí tem sido bem sucedida) ou de liberação de determinadas sujeições cotidianas que são a base das mais globais. Esse é um trabalho que já existe, mas que a esquerda da esquerda parece não conseguir compreender ou aceitar, agindo mais na lógica do jogo político da conscientização que não conscientiza nada, que termina por virar em apenas mais um método refinado de sujeição ao pensamento único, ou seja, uma prática totalitária, não libertária. Acredito que a esquerda precisa repensar sua espiritualidade de esquerda (não em um sentido religioso, mas político, ético), e não se prender a dogmas que não intensificam sua luta política, mas apenas enfraquecem-na; o que, se não a leva a inanição, a leva a cooptação política.
            Por isso acredito ser importante estar atento aos arranjos discretos da raposa, pois ela sabe muito bem como armar um circo (das eleições, das assembléias, dos conselhos deliberativos, dos sindicatos etc), fazer com que todo mundo participe, se expresse livremente, vote, fazendo depois justamente o contrário daquilo que as pessoas esperavam. E essa raposa não é somente o outro. Não é uma pessoa ou uma coisa, um paradigma político ou econômico. Não se trata tanto de ser ou não ser, mas de devir-ser. Esse devir-raposa atravessa a todos, ou seja, ela é ou pode ser cada um de nós em momentos ou práticas específicas.
Nas palavras de Foucault (2010, p. 06),

O liberalismo, o jogo: deixar as pessoas fazerem, as coisas passarem, as coisas andarem, laisser-faire, laisse-passer e laisser-aller, quer dizer, essencial e fundamentalmente, fazer de maneira que a realidade se desenvolva e vá, siga seu caminho, de acordo com as leis, os princípios e os mecanismos que são os da realidade mesma (FOUCAULT, 2009, p.62-63).

No entanto, a ação livre não se resume ou se reduz a liberdade de escolha ou de consumo. A estratégia da decisão coletiva pode não ter nada de coletivo. Aquela escolha que me faz ir até uma loja comprar um produto não se confunde, necessariamente, com o exercício da liberdade individual, pois não se trata apenas de uma escolha individual. A sutileza é que faz a diferença. Não ficar atento a elas ou estar cego a elas é ficar a mercê da história, preso não na caverna platônica, mas no teatro da democracia liberal. O pior não é não se dar conta disso ou mesmo atuar no teatro por alguma necessidade tática ou estratégica, mas defender que o teatro é a única coisa que deu certo até hoje sem jamais criticá-lo, procurando operar modificações, adaptações ou improvisações. A estratégia lúdica desse teatro liberal serve como matriz de inteligibilidade para o desenvolvimento de novos dispositivos de segurança, e não é por outra razão que os EUA e suas agências de inteligência e segurança têm dado suporte financeiro a esses investidores de risco para que incentivem e financiem a produção de tecnologia da informação. Desse modo, estou de acordo com Foucault, pois

um dispositivo de segurança só poderá funcionar bem, em todo caso aquele de que lhes falei hoje, justamente se lhe for dado certa coisa que é a liberdade, no sentido moderno [que essa palavra] adquire no século XVIII: não mais as franquias e os privilégios vinculados a uma pessoa, mas a possibilidade de movimento, de deslocamento, processo de circulação tanto das pessoas como das coisas. E é essa liberdade de circulação, no sentido lato do termo, é essa faculdade de circulação que devemos entender, penso eu, pela palavra liberdade, e compreendê-la como sendo uma das faces, um dos aspectos, uma das dimensões da implantação dos dispositivos de segurança (FOUCAULT, 2009, p.63-64).

            De acordo com Foucault, a nova razão governamental é consumidora de liberdade, podendo funcionar somente se existir efetivamente certo número de liberdades pré-determinadas/fabricadas: “liberdade do mercado, liberdade do vendedor e do comprador, livre exercício do direito de propriedade, liberdade de discussão, eventualmente liberdade de expressão, etc” (id., ibid, p. 86-87).

A nova razão governamental necessita portanto de liberdade, a nova arte governamental consome liberdade. Consome liberdade, ou seja, é obrigada a produzi-la. É obrigada a produzi-la, é obrigada a organizá-la. A nova arte governamental vai se apresentar portanto como gestora da liberdade, não no sentido do imperativo “seja livre”, com a contradição imediata que esse imperativo pode trazer. Não é o “seja livre” que o liberalismo formula. O liberalismo formula simplesmente o seguinte: vou produzir o necessário para tornar você livre. (...) O liberalismo, no sentido em que eu o entendo, esse liberalismo que podemos caracterizar como a nova arte de governar formada no século XVIII, implica em seu cerne uma relação de produção/destruição [com a] liberdade [...]. É necessário de um lado, produzir a liberdade, mas esse gesto mesmo implica que, de outro lado, se estabeleçam limitações, controles, coerções, obrigações apoiadas em ameaças, etc.” (id., ibid.).

O liberalismo não aceita a liberdade, ele a produz, a fabrica, transforma-a em mercadoria a ser consumida. Esses são, ao que me parece, os limites da liberdade liberal, especificamente aquela através da qual se justifica a estratégia política e econômica dos libertarians como Thiel. A criação de uma determinada plataforma tecnológica e de uma infra-estrutura organizacional é parte integrante dessa estratégia, as redes sociais são apenas uma dessas plataformas, cujo financiamento para seu desenvolvimento está relacionado a constituição de uma estrutura organizacional envolvendo empresas e fundos privados de capital de risco, o estado e fundos públicos para o financiamento de empresas de capital de risco que investem em jovens programadores como Zuckerberg  que estão desenvolvendo tecnologia da informação de interesse das agências de segurança do governo. Seguindo o pensamento de Foucault, a nova razão governamental necessita da liberdade para manter tudo sob seu controle, como já não consegue mais fazer isso sozinho, estabelece relações público-privadas para viabilizar seu projeto de produção e consumo de liberdade.




BIBLIOGRAFIA

ARENAS, R. Antes que anoiteça. Rio de Janeiro: Record, 1995.
FOUCAULT, M. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
MOURA, M. L. Serviço militar obrigatório para a mulher? Recuso-me!Denuncio! São Paulo: A Sementeira, 1933.
NUSSBAUM, M. A República de Platão: a boa sociedade e a deformação do desejo. Porto Alegre: Editora Bestiário, 2004.
ONFRAY, M. A potência de existir: manifesto hedonista. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.


OUTRAS REFERÊNCIAS

Os quadrinhos utilizados no texto foram retiradas do blog do André Dahmer http://malvados.files.wordpress.com/

A publicidade do fórum da liberdade foi retirado do jornal Correio do Povo de 2008.

A imagem que mostra a cronologia da soldada desaparecida em Passo Fundo e encontrada morta é do jornal Zero Hora de 2011.

2 comentários:

  1. Olá SloEduRi. Gostei bastante do seu texto e acredito que ele sintetiza muitas das minhas preocupações em relação ao Faceboo. Especialmente pelo fato dele ser uma propriedade e que, juntamente com a informação nele veiculada, pode ser vendido ou repassado a terceiros.
    No entanto, outra coisa é fazer uma ponte entre o Facebook e a sociedade liberal. Acredito que em alguns momentos você deveria qualificar melhor o liberalismo que está criticando, como por exemplo em:
    "O liberalismo não aceita a liberdade, ele a produz, a fabrica, transforma-a em mercadoria a ser consumida".
    Acredito que nesse caso você está criticando o liberalismo econômico e a desregulamentação das relaçãoes de produção e consumo que ele engendra, mas não necessariamente o liberalismo político. É claro que a economia influencia decisivamente a política no mundo de hoje, mas isso não necessariamente permite fazer uma afirmação tão ampla.
    Enfim, eu gostei do texto. É preciso refletir sobre o fato de que a informação privada tem se transformado em um ativo e isso é sem dúvida preocupante. Abraço.
    jsell.

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    1. Obrigado pela contribuição. Concordo contigo que seria importante distinguir as duas coisas, liberalismo econômico e o político. Meu foco foi nos liberais que separam o horizonte político do econômico (por isso me centrei muito na figura de Thiel, pois ele deixa isso bem claro). Penso que essa separação entre os dois horizontes é o que limita e reduz a noção de liberdade à algo que pode ser produzido, como é o caso dessas plataformas tecnológicas, e consumido, através da liberdade de escolha entre um determinado número de mercadorias. Tentei mostrar os limites dessa noção de liberdade. Mas concordo contigo e agradeço pela lembrança, talvez no futuro volte a essa questão para entender melhor tudo isso e esclarecer meu ponto de vista.

      Abrç.

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