Translate

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

A revolta de todos os dia

Não há por que esperar um clarão, a revolução, o apocalipse; a catástrofe é o que já se apresenta


Não há por que participar neste ou naquele impasse de extremaesquerda; Jean Paul Belmondo enfrenta o dilema em O Demônio das 11 Horas (1965), de Jean Luc Godard
COMITÊ INVISÍVEL

Uma insurreição: não somos sequer capazes de ver por onde isso começa. Sessenta anos de pacificação, de suspensão dos tumultos históricos, sessenta anos de uma anestesia democrática e da gestão dos acontecimentos enfraqueceram em nós uma certa percepção abrupta do real, o sentido guerrilheiro da guerra em curso. Para começar, é essa percepção que é preciso ser recuperada.
Não há por que se indignar com o fato de há mais de cinco anos serem aplicadas leis tão notoriamente inconstitucionais quanto a atual Lei de Segurança. É inútil protestar legalmente contra a implosão completa do quadro legal. É necessário que nos organizemos de modo consequente.
Não há por que participar deste ou daquele coletivo cidadão, neste ou naquele impasse de extrema-esquerda, na última farsa associativa. Todas as organizações que pretendem contestar a ordem presente têm, elas mesmas, um pouco mais folcloricamente, a forma, os costumes e a linguagem de nossos governantes, o ligeiro tremer de terror que nunca os abandona. Porque governar nunca foi outra coisa senão repelir por mil subterfúgios o momento em que a multidão se revoltará e todo o ato de governança nada mais é que uma forma de não perder o controle da população.
Nós partimos de um ponto de extremo isolamento, de extrema impotência. Tudo está a ser construído no que diz respeito a um processo insurrecional. Nada parece menos provável do que uma insurreição, mas nada é mais necessário.


Agarrar-se ao que se sente ser a verdade. Partir daí

Um encontro, uma descoberta, um vasto movimento de greve, um tremor de terra: todo o acontecimento produz uma verdade, ao alterar a nossa maneira de estar no mundo. Inversamente, uma constatação à qual ficamos indiferentes, que não nos modifica, que não nos compromete, ainda não merece o nome de verdade. Existe em cada gesto, em cada prática, em cada relação, em cada situação, uma verdade subjacente. O hábito é o de iludir, de gerir, o que produz a desorientação característica de grande parte das pessoas desta época. Na realidade, tudo se relaciona com tudo. A impressão de viver numa mentira ainda é uma verdade. Trata-se de não a largar, de partir daí mesmo.
Uma verdade não é uma visão do mundo, mas o que nos mantém ligados a ele de forma irredutível. Uma verdade não é algo que se detenha, mas algo que nos move. Ela me faz e me desfaz, ela me constitui e me destitui como indivíduo, me afasta de muita coisa e me torna parecido com aqueles que a experimentam.
O ser isolado que a ela se agarra encontra fatalmente alguns dos seus semelhantes. Na realidade, todo o processo insurrecional parte duma verdade à qual não se cede. Viu-se em Hamburgo, no decorrer dos anos 1980, que um punhado de habitantes duma casa ocupada decidiu que, daí por diante, seria preciso passar sobre os seus cadáveres para os expulsar. Houve um bairro cercado de tanques e helicópteros, dias de luta de rua, manifestações gigantescas – e, no final, uma prefeitura que capitula. Georges Guingouin, o “primeiro resistente da França”, só tinha como ponto de partida, em 1940, a certeza da sua recusa da ocupação. Para o partido comunista, não era mais do que “um louco que vive nos bosques”; até que passaram a ser 20 mil loucos a viver nos bosques e a libertar a cidade de Limoges.


Não recuar face ao que toda amizade contém de político

Fomos habituados a uma ideia neutra de amizade, como pura afeição sem consequência. Mas toda a afinidade é afinidade no seio de uma verdade comum. Cada encontro é um encontro noseio de uma afirmação comum, mesmo que seja a da destruição. Não nos ligamos inocentemente, numa época em que ter apego por algo e não desistir desse algo conduz frequentemente ao desemprego, em que é preciso mentir para trabalhar, e trabalhar, depois, para conservar os meios da mentira. Seres que, partindo da física quântica, prometessem a si próprios retirar dela todas as consequências, em todas as esferas, não se ligariam de uma forma menos política do que os camaradas que lutam contra uma multinacional agroalimentar. Eles seriam levados, mais cedo ou mais tarde, à deserção e ao combate. Os precursores do movimento operário tinham o atelier e, depois, a fábrica para se encontrar. Tinham a greve para se medir e desmascarar os covardes. Tinham o rendimento salarial, que opõe o partido do Capital ao partido do Trabalho, para traçar as solidariedades e as frentes de luta em escala mundial.  Nós temos a totalidade do espaço social para nos encontrarmos. Nós temos as condutas quotidianas de insubmissão para nos medirmos e desmascararmos os covardes. Nós temos a hostilidade a esta civilização para traçar as solidariedades e as frentes de luta em escala mundial.


Não esperar nada das organizações. Desconfiar de todas existentes, e, sobretudo, evitar tornar-se uma

Não são raras as vezes em que, no decorrer de uma desfiliação, cruzamos com as organizações – políticas, sindicais, humanitárias, associativas, etc. Acontece até encontrarmos alguns seres sinceros, mas desesperados, ou entusiastas, mas matreiros.
A atração das organizações prende-se com a sua aparente consistência – elas têm uma história, uma sede, um nome, meios, um chefe, uma estratégia e um discurso. Não deixam, no entanto, de ser arquiteturas vazias, que se esforçam por repovoar o respeito devido às suas origens heróicas. Em todas as coisas, como em cada um dos seus escalões, tratam, antes de tudo, da sua sobrevivência enquanto organizações. As suas repetidas traições alienaram, portanto, não poucas vezes, a ligação à sua própria base. E é por isso que por vezes encontramos essas pessoas estimáveis. Mas a promessa contida no encontro apenas se poderá realizar fora da organização e, necessariamente, contra ela.
Os “meios” são bem mais temíveis, com a sua textura maleável, os seus mexericos e as suas hierarquias informais. Todos os “meios” são de fugir. Cada um está como que encarregado da neutralização de uma verdade. Os círculos literários existem para reprimir a evidência dos escritos. As cenas libertárias, para reprimir a evidência da ação direta. Os meios acadêmicos existem para reter o que as suas pesquisas implicam para um grande número de pessoas. Os meios desportivos, para conter nos seus ginásios as diferentes formas de vida, que deveriam criar diferentes formas de desporto. São especialmente de fugir os meios culturais e os meios militantes. Ambos são antecâmaras da morte onde, tradicionalmente, vêm parar todos os desejos de revolução. A missão dos meios culturais é detectar as intensidades emergentes e, pela sua exposição, subtrair o sentido do que se faz; a missão dos meios militantes é subtrair a energia do fazer.
Todos os meios são contrarrevolucionários, pois o seu único objetivo é o de preservar o seu triste conforto.


Comitê Invisível

é um coletivo anônimo, em atuação na França. Este texto faz parte do livro L’Insurrection Qui Vient(A insurreição que chega), um ensaio-manifesto publicado em 2007 que anuncia uma eminente derrocada da cultura capitalista. Versões integrais do livro em francês, inglês, italiano, português, grego e espanhol podem ser encontradas no site do C.I.: www.bloom0101.org

Nenhum comentário:

Postar um comentário