Não há por que esperar um clarão, a revolução, o apocalipse; a catástrofe é o que já se apresenta
Não há por que participar neste ou naquele impasse de extremaesquerda; Jean Paul Belmondo enfrenta o dilema em O Demônio das 11 Horas (1965), de Jean Luc Godard |
COMITÊ INVISÍVEL
Uma insurreição: não somos sequer capazes de
ver por onde isso começa. Sessenta anos de pacificação, de suspensão dos
tumultos históricos, sessenta anos de uma anestesia democrática e da gestão dos
acontecimentos enfraqueceram em nós uma certa percepção abrupta do real, o
sentido guerrilheiro da guerra em curso. Para começar, é essa percepção que é
preciso ser recuperada.
Não há por que se indignar com o fato de há mais de cinco
anos serem aplicadas leis tão notoriamente inconstitucionais quanto a atual Lei
de Segurança. É inútil protestar legalmente contra a implosão completa do
quadro legal. É necessário que nos organizemos de modo consequente.
Não há por que participar deste ou daquele coletivo
cidadão, neste ou naquele impasse de extrema-esquerda, na última farsa
associativa. Todas as organizações que pretendem contestar a ordem
presente têm, elas mesmas, um pouco mais folcloricamente, a forma, os costumes
e a linguagem de nossos governantes, o ligeiro tremer de terror que nunca os
abandona. Porque governar nunca foi outra coisa senão repelir por mil
subterfúgios o momento em que a multidão se revoltará e todo o ato de
governança nada mais é que uma forma de não perder o controle da população.
Nós partimos de um ponto de extremo
isolamento, de extrema impotência. Tudo está a ser construído no que diz
respeito a um processo insurrecional. Nada parece menos provável do que uma
insurreição, mas nada é mais necessário.
Agarrar-se ao que se
sente ser a verdade. Partir daí
Um encontro, uma descoberta, um vasto movimento de greve, um
tremor de terra: todo o acontecimento produz uma verdade, ao alterar a nossa
maneira de estar no mundo. Inversamente, uma constatação à qual ficamos
indiferentes, que não nos modifica, que não nos compromete, ainda não merece o
nome de verdade. Existe em cada gesto, em cada prática, em cada relação, em
cada situação, uma verdade subjacente. O hábito é o de iludir, de gerir,
o que produz a desorientação característica de grande parte das pessoas desta
época. Na realidade, tudo se relaciona com tudo. A impressão de viver numa
mentira ainda é uma verdade. Trata-se de não a largar, de partir daí mesmo.
Uma verdade não é uma visão do mundo, mas o
que nos mantém ligados a ele de forma irredutível. Uma verdade não é algo que
se detenha, mas algo que nos move. Ela me faz e me desfaz, ela me constitui e
me destitui como indivíduo, me afasta de muita coisa e me torna parecido com
aqueles que a experimentam.
O ser isolado que a ela se agarra encontra
fatalmente alguns dos seus semelhantes. Na realidade, todo o processo
insurrecional parte duma verdade à qual não se cede. Viu-se em Hamburgo, no
decorrer dos anos 1980, que um punhado de habitantes duma casa ocupada decidiu
que, daí por diante, seria preciso passar sobre os seus cadáveres para os
expulsar. Houve um bairro cercado de tanques e helicópteros, dias de luta de
rua, manifestações gigantescas – e, no final, uma prefeitura que capitula.
Georges Guingouin, o “primeiro resistente da França”, só tinha como ponto de
partida, em 1940, a certeza da sua recusa da ocupação. Para o partido
comunista, não era mais do que “um louco que vive nos bosques”; até que
passaram a ser 20 mil loucos a viver nos bosques e a libertar a cidade de
Limoges.
Não recuar face ao que
toda amizade contém de político
Fomos habituados a uma ideia neutra de amizade, como pura afeição
sem consequência. Mas toda a afinidade é afinidade no
seio de uma
verdade comum. Cada encontro é um encontro noseio de uma afirmação comum, mesmo que
seja a da destruição. Não nos ligamos inocentemente, numa época em que ter
apego por algo e não desistir desse algo conduz frequentemente ao desemprego,
em que é preciso mentir para trabalhar, e trabalhar, depois, para conservar os
meios da mentira. Seres que, partindo da física quântica, prometessem a si
próprios retirar dela todas as consequências, em todas as esferas, não se
ligariam de uma forma menos política do que os camaradas que lutam contra
uma multinacional agroalimentar. Eles seriam levados, mais cedo ou mais tarde,
à deserção e ao combate. Os precursores do movimento operário tinham o atelier e, depois, a fábrica para se
encontrar. Tinham a greve para se medir e desmascarar os covardes. Tinham o
rendimento salarial, que opõe o partido do Capital ao partido do Trabalho,
para traçar as solidariedades e as frentes de luta em escala mundial. Nós
temos a totalidade do espaço social para nos encontrarmos. Nós temos as
condutas quotidianas de insubmissão para nos medirmos e desmascararmos os
covardes. Nós temos a hostilidade a esta civilização para traçar as
solidariedades e as frentes de luta em escala mundial.
Não esperar nada das
organizações. Desconfiar de todas existentes, e, sobretudo, evitar tornar-se
uma
Não são raras as vezes em que, no decorrer de uma desfiliação,
cruzamos com as organizações – políticas, sindicais, humanitárias,
associativas, etc. Acontece até encontrarmos alguns seres sinceros, mas
desesperados, ou entusiastas, mas matreiros.
A atração das organizações prende-se com a sua aparente
consistência – elas têm uma história, uma sede, um nome, meios, um chefe,
uma estratégia e um discurso. Não deixam, no entanto, de ser arquiteturas
vazias, que se esforçam por repovoar o respeito devido às suas origens heróicas.
Em todas as coisas, como em cada um dos seus escalões, tratam, antes de tudo,
da sua sobrevivência enquanto organizações. As suas repetidas traições
alienaram, portanto, não poucas vezes, a ligação à sua própria base. E é por
isso que por vezes encontramos essas pessoas estimáveis. Mas a promessa contida
no encontro apenas se poderá realizar fora da organização e,
necessariamente, contra ela.
Os “meios” são
bem mais temíveis, com a sua textura maleável, os seus mexericos e as suas
hierarquias informais. Todos os “meios”
são de fugir. Cada um está como que encarregado da neutralização de uma
verdade. Os círculos literários existem para reprimir a evidência dos escritos.
As cenas libertárias, para reprimir a evidência da ação direta. Os meios
acadêmicos existem para reter o que as suas pesquisas implicam para um
grande número de pessoas. Os meios desportivos, para conter nos seus ginásios
as diferentes formas de vida, que deveriam criar diferentes formas de desporto.
São especialmente de fugir os meios culturais e os meios militantes. Ambos são
antecâmaras da morte onde, tradicionalmente, vêm parar todos os desejos de
revolução. A missão dos meios culturais é detectar as intensidades emergentes
e, pela sua exposição, subtrair o sentido do que se faz; a missão dos meios
militantes é subtrair a energia do fazer.
Todos os meios são contrarrevolucionários,
pois o seu único objetivo é o de preservar o seu triste conforto.
Comitê Invisível
é um coletivo anônimo, em atuação na França. Este texto faz parte do livro L’Insurrection Qui Vient(A insurreição que chega), um ensaio-manifesto publicado em 2007 que anuncia uma eminente derrocada da cultura capitalista. Versões integrais do livro em francês, inglês, italiano, português, grego e espanhol podem ser encontradas no site do C.I.: www.bloom0101.org
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