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sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Estado de exceção permanente


A partir da publicação de um texto de Bia Barbosa na “Carta Maior”, em 18 de julho deste ano, intitulado “Brasil forjado na ditadura representa Estado de exceção permanente”, que estava cobrindo a realização de um seminário em São Paulo que tratava do tema, o governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, em 24 de julho publicou no mesmo sítio um artigo intitulado “Estado de Exceção no Brasil?”, questionando e divergindo das conclusões dos participantes daquele seminário. Depois disso se seguiram outras publicações em blogs pessoais, cito dois, ambos publicados em 28 de julho. A primeira de Bruno Cava, “Estado de exceção e esquerdismo”, que a meu ver se aproxima mais da perspectiva de Tarso Genro, afirmando que os esquerdistas fazem um uso indigente das teorias do estado de exceção. A segunda, de Hugo Albuquerque, “A Polêmica de Tarso Genro, Estado de Exceção e Democracia”, apesar de não se opor radicalmente as outras duas, afasta-se tanto da perspectiva de Tarso quanto da dos “esquerdistas”, afirmando que ambos cultivam uma fé na oposição entre regra e exceção, sendo que para Albuquerque “regra e exceção sempre coabitaram do mesmo modo”, pois “o Estado de Direito implica na existência de uma exceção latente – e isso não tem nada a ver, necessariamente, com a Ditadura Militar”.
Na edição de agosto da revista Cult há um dossiê, “A insurreição que virá”, que trás alguns artigos (dois deles estou publicando aqui) sobre “o novo momento da anarquia, o renascimento do feminismo e a memória da guerrilha brasileira”. Um desses artigos, reproduzido logo abaixo, é de Edson Teles, um dos participantes do seminário cuja cobertura deu origem ao texto de Bia Barbosa. Foi a partir desse artigo que fui procurar outros elementos e vozes dissonantes para um tema de pouca visibilidade nos nossos meios de comunicação. Aqui não se trata de afirmar em definitivo uma posição ou tomar o partido de alguém, mas de procurar se inserir dentro dessa questão e entende-la minimamente antes de tirar conclusões ou levantar bandeiras. Apesar disso, tendo a me aproximar mais da análise de Albuquerque, pois o fato de estarmos vivendo em um Estado Democrático de Direito não implica que em alguns casos e momentos ele também não seja de Exceção. No entanto, isso não nos permite assemelha-lo a uma ditadura, ou afirmar que o momento que vivemos é apenas a efetivação de mais uma etapa do projeto forjado pelo mesmo grupo ou classe social que forjou a ditadura, como se não houvesse ocorrido nenhuma resistência, rupturas e/ou transformações em relação a essa lógica de poder. Enfim. Segue o artigo de Edson Teles, cujo título dá nome a esta postagem.




A ação transformadora passa pela resistência a uma prática de governo fundamentada no mercado e autorizada pela terapia das carências da população

Edson Teles*


A democracia brasileira constitui-se durante uma transição fundamentada em consenso obtido via acordos das velhas oligarquias política e econômica com os novos atores surgidos durante o processo. Iniciada ainda em 1974, com a chamada “abertura lenta, gradual e segura”, seguiu até a promulgação da Constituição de 1988, perfazendo o longo período de 14 anos. O prolongamento da transição indicou o controle para garantir que o novo regime não surgisse por meio de ruptura contundente com a ditadura. A lógica do processo foi a de produção da governabilidade estável, mantendo os conflitos sob o manto da pacificação e da reconciliação. Esse novo modo de governo, consensual, teria como estrutura central o paradigma do estado de exceção.
Há três momentos históricos da transição que nos permitem visualizar o início dessa lógica: a Lei de Anistia de 1979; a eleição do primeiro presidente civil via Colégio Eleitoral; e a Constituição de 1988. São momentos simbólicos da democracia e possuem, entre eles, ao menos duas características em comum. Por um lado, configuram-se como saídas negociadas em lugares privados dentro do Congresso e dos palácios de governo, silenciando ações dos movimentos sociais e das lutas populares. Soma-se a isso, como segunda característica, o fato de anunciarem saídas para dilemas políticos por meio da instituição de estados de exceção, momentos nos quais o ordenamento jurídico é suspenso, por algum instrumento interno às leis, em favor da “superação” de circunstâncias que poderiam gerar alguma instabilidade ao processo político.
Em 1979, a campanha pela anistia gerou uma pressão popular e se configurou como o primeiro movimento social a fazer uso do discurso dos direitos humanos no país. Contudo, o governo militar do general Figueiredo impôs uma lei ambígua, a qual viria a tornar-se, com confirmação do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2010, o marco inaugural da impunidade acordada. A democracia nasceria sob a insígnia de um estado de exceção, pois ao invés de seguir as leis do país e os tratados internacionais aceitos e assinados, preferiu suspender tais direitos e apostar na não punição dos criminosos do Estado ditatorial como parte do acordo consensual.
Próximo ao fim da ditadura, a sociedade brasileira se mobilizou no maior movimento popular da história do país, conhecido por “Diretas Já”. Milhões de pessoas, em comícios e passeatas, exigiram a passagem democrática de um regime de violência para o Estado de Direito. Novamente prevaleceu a negociata. Ao final, tomou posse como presidente, devido à precoce morte de Tancredo Neves, o ex-líder do partido do governo militar no período da aprovação da Lei de Anistia, José Sarney. O governo civil foi inaugurado pela exceção à regra democrática. Com o verniz da legitimidade de um Congresso com vários partidos, autoriza-se o silenciar da luta política através de eleição indireta via Colégio Eleitoral.
No Congresso constituinte, eleito em 1986, houve uma significativa mobilização dos mais variados movimentos sociais. Frutos dessas ações surgiram direitos considerados avançados (trabalhista, do índio, da mulher, do adolescente etc.). Entretanto, alguns aspectos da nova Constituição pouco foram alterados em relação àquela outorgada pela ditadura em 1969, especialmente, as questões referentes à propriedade da terra, aos meios de comunicação e às relações civis-militares. Neste último item, para citar um exemplo, a Constituição incluiu o artigo 142, sobre a ingerência militar nos assuntos civis: “As Forças Armadas destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Em uma democracia, o poder não pode ser garantido por quem empunha armas, sob o risco de vivermos o fantasma constante de um golpe de Estado legal, aos moldes do ocorrido no Paraguai.
Práticas dos governos democráticos, tais como: a impunidade gerada pela Lei de Anistia; a gestão do Estado com medidas provisórias; o trato do sofrimento social através de ações administrativas sem inclusão na lei (por exemplo, bolsa família); a tortura nas instituições de segurança e punição; a presença do Exército nas periferias de grandes capitais; o desrespeito às normas de uso público de verbas para a Copa do Mundo; um dos maiores índices de homicídios por parte da polícia; e a ausência e o silenciar dos movimentos sociais nas decisões do Estado, são exemplos da transformação da exceção em regra no Estado de Direito.
Na lógica da governabilidade, realiza-se a conta do que é provável, compondo com as forças mais poderosas e fixando uma média considerada possível, além da qual praticamente nada será permitido. No cálculo da política de Estado, os restos são computados, mas possuem um valor diferenciado, ora sendo importantes para dar vazão às ações reivindicatórias, mas, por outras vezes, sendo manipulados para autorizar o estado de exceção com o qual o governo imporá suas decisões. A política do possível cria um consenso cujo resultado é o bloqueio dos restos resultantes do cálculo, notadamente os movimentos de resistência às políticas de Estado.
Inaugurou-se uma democracia social cuja herança das injustiças e carências do passado (sofremos ditaduras, escravidão, extermínio de índios, problemas crônicos nas áreas de saúde, educação, alimentação etc.) justifica a adoção de medidas necessárias e terapêuticas. Sob a promessa de desfazer os erros cometidos (sempre em outro governo, outro Estado, outra história) e diminuir o sofrimento social, autoriza-se o acionamento de medidas emergenciais que dispensam os procedimentos democráticos. Tais medidas não são ilegais e se encontram dentro do ordenamento. É uma espécie de ato ilícito autorizado pelo lícito.
O Estado participativo estabelece um novo modo de agir que vem substituindo o movimento social independente do Estado de Direito, bem como as formas tradicionais da democracia representativa. Em lugar da transformação social, os novos atores são instados a fomentar, no teatro de fabricação dos resultados, a diminuição do sofrimento através de uma mudança contabilizada nos índices de desenvolvimento da humanidade. Na nova forma da política, os instrumentos e a racionalidade da atividade terapêutica substituem a possibilidade de ruptura por um fazer planejado enquanto artefato de controle da ação. Instauram-se, assim, novas soluções para os problemas de miséria e desigualdade sem desfazer os compromissos com os interesses de mercado.
Encontramo-nos diante de uma armadilha: evoluímos para a construção de um regime de registro das mais variadas práticas em direitos, legalizando os conflitos e as relações sociais; por outro lado, essa mesma disciplinarização da vida por meio das leis tende a estabelecer uma judicialização da política. Tal judicialização introduz um elemento autoritário nas democracias contemporâneas: o estado de exceção e a consequente suspensão dos direitos por meio de um mecanismo interno à própria lei. E isso em nome da garantia de direitos e do desenvolvimento.
Não se trata de dizer contra os direitos, pois sabemos que boa parte das conquistas políticas e civis advém de definições que se efetivaram em acontecimentos jurídicos, possibilitando certa limitação na ação de violação da dignidade humana por parte do Estado. Trata-se de uma crítica radical com o intuito de sair da obviedade e da superficialidade dos discursos, desnaturalizando pretensas políticas da verdade.
Parece-nos que a ação transformadora passa pela resistência ao estado de exceção permanente, vinculado a uma prática de governo fundamentada na lógica de mercado e autorizada pela terapia das carências da população. Lutar contra a condição miserável exige a consciência de que a necessidade de diminuição do sofrimento social tem autorizado modos autoritários de ação política. Seja nos poderes instituídos no Estado, nas universidades, nas políticas sociais, no valor coletivo da terra ou no desenvolvimento da economia, o governo da vida tem se realizado por meio de um estado de exceção permanente e resistir a ele seria um passo importante para os movimentos sociais.

*Edson Teles é doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo e professor de Filosofia Política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Artigo publicado na revista Cult, de agosto de 2012.

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