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quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Um amor de Swann


Mas na idade já um pouco desiludida da qual se aproximava Swann e na qual uma pessoa sabe se contentar em estar apaixonada pelo simples prazer de estar, sem fazer demasiadas exigências de reciprocidade, tal aproximação de corações, se não é mais, como na primeira juventude, o objetivo para o qual tende necessariamente o amor, permanece em compensação unida por uma associação de ideias tão intensa que pode dele se tornar a causa, caso antes dele se apresente. Sonhava-se outrora possuir o coração da mulher pela qual se estava apaixonado; mais tarde, sentir que se possui o coração de uma mulher pode bastar para que se fique apaixonado. Assim, na idade na qual pareceria, já que se busca sobretudo no amor um prazer subjetivo, que a parte do apreço pela beleza de uma mulher deve ser a maior de todas, o amor pode nascer - amor dos mais físicos - sem que tenha existido, na base, um desejo preliminar. Nessa época da vida, já fomos muitas vezes atingidos pelo amor; ele não mais evolui apenas de acordo com as suas próprias leis desconhecidas e fatais diante de nosso coração surpreso e passivo. Nós vamos em seu auxílio, nós o falseamos com a memória, com a sugestão. Reconhecendo um de seus sintomas, lembramos, fazemos renascer os outros. Como possuímos sua canção inteira em nós gravada, não precisamos que uma mulher nos diga o início - repleto da admiração que a beleza inspira - para encontrarmos a continuação. E se ela começa pelo meio – lá onde os corações se aproximam, onde se fala de não mais existirmos senão um para o outro –, estamos bastante habituados à música para irmos de imediato ao encontro de nossa parceira, no trecho em que ela nos espera.

PROUST, M. Um amor de Swann. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 25-26.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Bate-papo: duas conversas


Que tipo de lembrança você guarda das instituições educativas pelas quais já passou? Eu passei por boas e más experiências. É claro que o segundo tipo de experiência costuma marcar mais, mesmo sendo em menor número, podem ter um maior significado. Assim, tenho encarado bem as más experiências, não no sentido de não me incomodar com elas, mas de ver elas como um aprendizado. Com certeza não é uma boa maneira de aprender, nem julgo isso necessário, mas dependendo do caso e das circunstâncias em que se vive, se faz necessário. No caso da universidade tive de aprender algumas coisas a custo de algumas más experiências. Em duas ocasiões e contextos diferentes um professor me disse para não perder meu tempo com as disciplinas, não se preocupar com boas notas, mas se centrar na pesquisa, no conhecimento e investigação daquilo que interessa, pois é assim que se desenvolve a prática da leitura atenta, da escrita e, por conseguinte, do discurso filosófico. É claro que o professor em questão estava tentando me convencer de que aquele conteúdo era universalmente motivador para toda espécie humana e não somente para ele.  Dizem que se conselho fosse bom não se daria de graça. Mas não se trata de “conselho” bom ou ruim, a não ser quando não levamos em conta quem está falando. Aí o problema não é o “conselho” ou o “conselheiro”, mas a ingenuidade de quem recebe estas informações acerca do modo de vida de alguém como conselhos universalmente válidos. Bem. Na outra ocasião, em outra conversa e com outro professor, falávamos sobre as dificuldades do trabalho acadêmico, as burocracias e o tempo perdido com falsos problemas etc. O professor falava sobre a importância de não perder tempo com burocracias, se necessárias, livra-te logo delas. Definitivamente esse é um problema, pois ao invés de me livrar do mal necessário, fico procrastinando e termino por me ocupar mais com aquilo do que o necessário e suficiente. Isso não é perfeccionismo. É burrice estratégica mesmo. Esse mesmo professor, quando conversávamos sobre política, disse que hoje a questão não está mais na ocupação de espaço, como o faz a esquerda tradicional, mas na ocupação do tempo (Nas próximas postagens falarei sobre isso e sobre a estratégia dos liberais em relação às plataformas tecnológicas que dão suporte às redes sociais). Então se o sujeito não quer se deixar vencer por essa lógica, é preciso resistir a esse trabalho de convencimento, é necessário certo cuidado para não se deixar absorver e deixar de lado aquilo que realmente interessa. Enfim. Isso, ao meu modo, estou compreendendo agora.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

"Deus me livre de ser inteligente"

A criação deste blog é uma tentativa de retomar o exercício de um determinado tipo de escrita, deixada em segundo plano logo depois de eu ter entrado na universidade. Ou melhor, é um deslocamento que venho tentando realizar a algum tempo em relação àquele tipo de escrita acadêmica “positivista”, ou com aquele tipo de escrita influenciada por uma preocupação com a formalização da linguagem natural e criação de uma artificial que transcenda os limites da primeira. Não que esse tipo de escrita formal tenha pouco valor, mérito ou razão de ser, mas creio que certas relações que se estabelecem com esse tipo de escrita embrutecem o pensamento e embotam a sensibilidade.
É interessante como alguns homens e mulheres “doutos” e “cultos” limitam todo seu potencial criativo a um tipo de escrita praticada somente entre os muros do seu local de trabalho; como se deixam submeter e resumir à figura do “homem/mulher de carreira”, afastando-se do mundo comum. Interessante, também, como alguns aspirantes a “jovem cientista” se deixam reduzir à condição de “filhotes de orientador”.  E aqui não me refiro aos doutos da área de “ciências exatas”, mas das humanas de modo geral. Ao mesmo tempo em que podem possuir um profundo conhecimento da literatura de suas respectivas áreas, destilam preconceito em relação aquilo que menos fazem questão de conhecer e compreender com a mesma atenção e cuidado com que cumprem suas obrigações profissionais: a realidade que extrapola a realidade do seu gabinete. Essa parece ser a posição que alguns intelectuais se colocam: a de cumpridores de tarefas, de pequenos empresários que buscam atingir metas de produção e, assim, arrecadar mais receitas para a contínua reprodução dessa lógica.
A lógica que faz funcionar a cabeça de alguns educadores atualmente parece ter muito a ver com essa lógica empresarial. Pesquisar já não é “apenas” produzir conhecimento, mas investir em um pé-de-meia complementar a renda de professor. Tudo é investimento, de tudo se espera algum retorno financeiro (bolsas). Nessa lógica os estudantes e orientandos transformam-se em assistentes que precisam auxiliar o patrão a atingir as metas de produtividade da empresa ou do programa de pós-graduação. Assim, o mercado da pesquisa no Brasil é muito competitivo, pois na disputa por verbas para financiar o pé-de-meia dos professores e, por conseguinte, suas pesquisas, há uma linha tênue que separa o profissional do imoral. Desse modo, alguns professores não se incomodam nem um pouco em deixar o seu propalado profissionalismo de lado e partir para as práticas mais vis e baixas para destruir seus concorrentes e colegas de trabalho. Nesse sentido concordo que já não nos distanciamos tanto de um operário, pois se o trabalho do pensamento não segue exatamente a lógica produtivista da CAPES, ele é flexível o suficiente para ser capturado e submetido a um determinado modelo de produção intelectual. O trabalho realizado por alguns educadores, filósofos ou pesquisadores em geral poderia ser caracterizado como um trabalho de luto. Não seria a ineficiência das políticas públicas para a Educação, dos recursos e do gerenciamento desses recursos públicos apenas mais um sintoma dessa esterilidade e não “o” problema da educação?
O debate acerca da Educação brasileira geralmente gira em torno do mesmo tema: verba e financiamento. Ao fim e ao cabo é por isso que se faz greve. Esse tem sido o ponto nevrálgico desses debates. Resumir todo o trabalho do pensamento e toda prática educativa a um pragmatismo grosso que visa especialmente o aumento da (re)produção bibliográfica do saber já é sucatear a Educação. Muitas vezes não é a falta de verba que incentiva esse trabalho de luto, mas ao contrário, investe-se e incentiva-se cada vez mais esse tipo de trabalho. Antes de decidir aumentar as verbas para Educação não seria preciso decidir mudar de pensamento acerca do que estamos fazendo em educação atualmente? Ao passo que os investimentos em pesquisa crescem no Brasil, em que inúmeros programas de pós-graduação se consolidam, temos apenas 62% de universitários brasileiros plenamente alfabetizados. Além da necessária melhoraria do ensino básico, é preciso que os professores universitários se dediquem mais ao trabalho em sala de aula, se dediquem e lutem por melhoria nos cursos de licenciatura para que os futuros professores da educação básica não reproduzam essa miséria intelectual nas salas de aula.
Alguns não se dedicam nem a uma nem a outra coisa, não querem nem fazer o pé-de-meia da pesquisa, nem dedicar-se seriamente ao trabalho em sala de aula, mas apenas participar do show business acadêmico. Querem brilhar, e por isso estão mais para showman do que para professores e/ou pesquisadores. No entanto, como são bons atores, interpretam o papel de professor com uma paradoxal mestria. Lembro que no curso de Filosofia sempre houveram pessoas que estavam ali como uma “segunda opção”. Haviam aqueles que queriam estar na Medicina, na Psicologia, no Direito etc. Incluiria entre eles aqueles que gostariam de estar cursando e ter êxito em algum curso de “ciências exatas” e aqueles que, a meu ver, gostariam de ter seguido uma carreira mais próxima daquela das Artes Cênicas. O aspirante a “jovem cientista” e o velho ator taxonômico.
No entanto, é curioso verificar que são justamente essas duas figuras que determinam, atualmente, o que é ou não é Filosofia... com taxonomias, vestibulares e et cetera. Nesse caso, do ator taxonomista, creio que uma boa área de conhecimento seria a Biologia. O filósofo-ator-taxônomo é aquele que ao invés de pensar a Biologia filosoficamente, pensa a Filosofia “biologicamente”, aplicando métodos originários da Biologia para a classificação dos diversos graus de dificuldade filosófica de uma determinada questão ou enunciado. Para que pensar a filosofia filosoficamente se temos a Biologia? Dir-se-á que não se trata de uma taxonomia das ciências exatas, mas aquela das ciências sociais e “blá, blá, blá”. Enfim. De todo modo, um método científico para determinar a relevância filosófica de um enunciado. Para que filósofos? Não poderíamos criar máquinas capazes de classificar e estabelecer os diferentes graus filosóficos de  determinados enunciados ou questões? No Brasil já conseguimos, a nosso modo, dar um passo nesse sentido: sabemos se um estudante do ensino médio “filosofou” depois de uma leitora automática verificar se o mesmo respondeu corretamente as questões em um cartão resposta. Sabemos se um curso de filosofia está apto a formar o filósofo profissional quando seus acadêmicos respondem adequadamente a prova do ENADE. É o círculo da miséria intelectual institucionalizada e financiada com o dinheiro que é arrancado (imposto) daqueles que deverão, por obrigação cívica ou legal, fazer a roda desse sinistro engenho girar.
            Por isso, como diria Nelson Rodrigues, “Deus me livre de ser inteligente”. Ou ainda, parafraseando Estamira, Deus me livre de ser um inteligente ao contrário. Se defender e sustentar todo esse sistema é pré-requisito para ser reconhecido como alguém inteligente que pensa e filosofa, prefiro a burrice, que conforme Nelson Rodrigues tem ao seu favor a eternidade. Mas se não estou completamente equivocado, a eternidade da burrice justificaria o meu pessimismo em relação a possibilidade de encontrarmos uma “solução” mais inteligente para os problemas da educação, pois a própria ideia de solução que nos é apresentada já é coisa de espertos ao contrário. Aquela solução que carrega consigo um problema bem maior. O velho truque do “presente de grego”.
            Este blog é desprovido de pretensões que não sejam as de gritar, mas também de cantar, certas coisas. Portanto, com ele buscarei abordar algumas questões que foram apenas esboçadas ou insinuadas neste post, relativas às minhas áreas de interesse, isto é, Filosofia, Política, Educação e... Lazer.

Obs: a frase da pichação é do filme “Uma mente brilhante”.

Fontes:

Fotografia da pichação

Pesquisa sobre alfabetismo funcional na última década